sábado, 31 de outubro de 2009

Doze

Anos passaram fazendo-nos crer num recomeço. Particularmente acreditei nisso. Patrícia voltaria, seria o que ansiei. Dia a pós dia persegui tal desejo. Maldita crença a pungir, despedaçar, cortar, mutilar. Não apenas um, ou meu fiel sofredor companheiro e eu. Sofríamos, meu coração, elas e eu. Até quando estive só, masoquistamente feria-me. Meticulosamente maculava resquícios de sobriedade resistentes, sofríveis em mim. Impassível, nem piscava, nada sentia.

Quão inútil à luta dos que perdem o propósito? Deve ser! Não menor que a luta dos que nem souberam um dia algum propósito. Não menor que a luta dos que parasitaram existência a dentro. Essa crença me fazia sorrir com o canto da boca. Nada de mágoa, ressentimento ou angústia. Você morreu! Morte dando lugar à vida em outro coração. Fazendo do medo antes combatido, velho amigo nos antídotos contra males e você. Estamos bem, sua dor e eu. O que és ao telefone e pessoalmente dissimula; o que fui sem negar e prefiro deixar no passado. Morremos! Assassina! Matou-nos a sutis golpes, lenta, meticulosamente. Nada que disser supera os fatos. Estamos mortos e a culpa é toda sua.

Por mais certeza que exista nas argumentações, fatos levarão você à incredulidade em suas ações. Voltas atrás. Estamos mortos , não entende? Morremos abraçados a cruz invisível , a mesma que supostamente uniu-nos um dia. Acabou! Recolha sua mochila repleta de argumentações lógicas sobre o sentido da vida, encolhe os ombros. Tantos encolheram, tantos encolherão, não está sozinha nessa. Morremos, acabou! De grito em grito senti que toda cidade conseguia me ouvir: “Acabou! Morreu! Morremos!”

Sorri ao justo destino de ser o único a não decidir a própria vida, encolhi os ombros e gritei: “Morri!” Dessa vez ninguém ouvia, não queriam que eu morresse assim tão rápido. Morri e estava só. Patrícia igualmente morte e igualmente só nada falou. Frios e calmos na certeza de termos morrido nem mexíamos; até que alguém contemplou o céu azul-poluído nos sorrisos falsos bem representados e jogou uma flor. Felicite você mesmo, é o dia mais feliz de sua vida. Você morreu.

Helder Santos

31-10-2009

3:15 pm

sábado, 10 de outubro de 2009

Onze

Moramos numa cidade ainda provinciana e poucas pessoas ocupavam os espaços repletos de vazio dos que lá habitavam. Coadjuvantes passivos da história que não se construía homens indo e vindo a lugares que de longe não enxergavam. Nosso lugar. Calmo, simples e pacífico. Estado de não se viver algo, vivíamos. Pessoas reunindo-se paulatinamente em torno de algo que julgavam construir mesmo sem saber estavam por presenciar acontecimentos incomuns a cidades como essa. De imaginar cidades crescendo ao lado dessa, estanque, passiva e monótona. Éramos felizes na certeza de criamos leis próprias a cidade interior de nós mesmos Acontecimentos paralelos a esses se enquadravam normais aos olhos dos seres lá viventes. Acontecimentos corriqueiros a homens e mulheres adaptados ao que entendiam como comuns não apeteciam nosso espírito, precisávamos de mais, muito mais.

Olhos se entregando, confessando desejo, necessidade de toque. Presença. O que a cidades próximas a nossa seria entendido normalmente aqui não seria. Ilegais, nos entregávamos ao que entendíamos por paixão sem saber nome exato, sem entender como poderia acontecer de uma cidade no interior dessa cidade possuir algo especial, incomum aos demais. Nos encontrávamos simples, atenciosos, retilíneos e precisos no desejo singular de felicidade.

Aos atores, essa realidade que além de singular mostrar-se-ia irreal, não havia muitas alternativas. Não que não vivêssemos o que estávamos vivendo, não que não sentíssemos o que se diz sentir banalmente em cidades parecidas com a nossa. Sentiam de fato. Havia um algo mais entre constelações no céu púrpura e corações desenhados na terra molhada que chuva e vento apagariam. Deles, chuva ou vento, nada apagaria. Nenhum fenômeno natural ou quiçá a força de deus teria força de destruir cidades como aquela. Sociedade homogênea a dois. Duas mãos. Dedos entrelaçados ao carinho incomum em cidades comuns as que não desejariam habitar.

Em cidades como a deles pouco importava futuro ou passado se presente era guia, condição indispensável ao que julgavam, e era certo que parecido e igual são condições divergentes quando se trata de ter alguém sendo de alguém ao lado de ter alguém por ter alguém. Pose, posse torturante a corações pulsando febrilmente em desejo por desejo. Corações condicionados ao medo de se ter corpo enquanto há corpo e daí sair de encontro à outra cidade. Coração pulsando, peito trêmulo, respiração ofegante. Gestos, olhares. Passos uniformes em sentido único, o sentido de ser sentido. Sentido por um só meio, diretamente proporcional e sem desvios. Dois belos bêbados astros circulando ante constelações povoadas de anjos no espaço só nosso.

Passeávamos embalados pela silenciosa música que ouvíamos. Cantarolávamos com os olhos respirando com o peito o abraço justo de ser laçado pelos braços da ternura. Criávamos condições inimagináveis para aquela coisa presente a poucos, viva em nós, que chamamos de amor. O deserto florido que de longe observávamos nada remetia a paisagem tropical inalada em nossa caixa em formato de coração. Não se ouvia grito ou barulho estranho ao ronronar plácido da cidade com dois habitantes. Como em comunidades fechadas fabricávamos as próprias armas de defesa e medicamentos. Cardiologistas¹ singulares há inexistência de dor, pessoas preparadas para o inesperado esperado do amor sem rimar amor e dor, sem desaperceber o sabor da flor, ser cor. Em janeiro, Patrícia e vivíamos na mesma cidade, a cidade dos nossos corações. Em pouco tempo chegaria fevereiro, em nossa cidade já era feriado.

Helder Santos

01:47 pm

10-10-09

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Dez


Final de ano não era a época ideal para Patrícia. Aliás, nenhum tipo de final. Final de filme, final de livro. Todos os finais para ela representavam o fim de uma trama e sem tramas não podia viver. Não que fosse de chorar nos finais, até acontecia. Raramente é verdade, mas, acontecia. De fato preferia sorrir e contemplar a inata precisão de seus movimentos e narcisísticos.

Mesmo que a presença certa do fim representasse a confirmação estática do início de um novo ciclo em novos velhos doze meses de apreensão e dúvida, lá estava feliz e determinada da consciência mutável e estável de suas ações. Do controle sobre ações ao domínio exterior de outro alguém o início confrontava-se com o fim. Afinal, há aprendizado nos finais proporcionando maior campo de ação no recomeço para um e para outro. Não era apenas a garota dos sonhos de um garoto, era a mulher nos sonhos dos sonhos de um homem. A constante luta entre o poder que um exercia na subserviência do outro e a relação de medo entre eles poderia mudar. Finais iniciando o que antes parecia impossível são comuns em histórias de pessoas assim. Satisfação e dúvida eram latentes a ambos. Se por um lado Patrícia acumulava assertivas eu somava-as em dúvidas. Questionar-se é fundamental. Assim como ela, estava ciente disso. Precisava mudar , mover-me num novo caminho. Só seria possível com ela, por ela, para ela. Para isso, restava-me confrontar-lhe. Palavras belas ou carícias não renderiam nada, não renderam até então. Cabia a mim tomar seu lugar, agir a partir de suas ações, possuir sua moeda de câmbio. Ser indiferente.

O sino bate as 11 aproximando-nos do fim quando entregamo-nos ao princípio supremo da vida, a libertação do mundo, do velho mundo nos remetendo ao espírito supremo da humanidade antes de pecar. Rezávamos ao mesmo Deus o mesmo pedido. O inerente egoísmo de Patrícia vinculava-se a mim. Lá estávamos vestidos de pecado suplicando aos céus o domínio sobre o outro. No fim, iniciamos um novo começo. Fiquei no passado. Patrícia, passado e presente, ação imutável prestes a confrontar-se com outro eu. Meia noite, abraços e beijos saudaram o novo ano. Não era mais início o que Patrícia via. Não era mais final o que eu conseguia avistar. Atentamente, olhos nos olhos, não como antes, vi seu alter ego refletido em seus olhos. Esse ano ninguém dormiria.

Helder Santos

06:31 pm

07-10-09